Ecologia ao avesso: Avaliando aspectos ecológicos da dieta e parasitismo de primatas amazônicos por meio do estudo de aparelhos digestórios doados por caçadores de subsistência
Caça de subsistência. Consumo de artrópodes. Conteúdo estomacal. Dispersão de sementes. Platyrrhini. Morfologia funcional do trato gastrointestinal
Estudos sobre a ecologia alimentar e parasitológica de vertebrados que habitam ambientes remotos e de difícil acesso, típicos de florestas úmidas tropicais, são incipientes. O custoso esforço logístico empregado no uso de métodos convencionais, como a observação direta do comportamento animal e/ou a coleta de amostras fecais em florestas altas e densas, como na Amazônia, justifica parcialmente essa lacuna nos estudos ecológicos na região. A análise de vísceras provenientes da atividade de caça de subsistência praticada por caçadores é uma oportunidade para o estudo de aspectos ecológicos de animais silvestres em vida livre. Nesta tese, avaliei aspectos ecológicos da dieta e do parasitismo em primatas platirrinos (Platyrrhini, Primates), a partir da análise de aparelhos digestórios doados por caçadores de subsistência na Amazônia central e ocidental. Aferi o comprimento dos órgãos tubulares do aparelho digestório de 289 espécimes pertencentes a 11 gêneros de primatas e avaliei o conteúdo estomacal de 178 espécimes de nove gêneros, distribuídos nas famílias Atelidae, Cebidae e Pitheciidae. Encontrei adaptações na morfologia dos aparelhos digestórios que refletem diferentes padrões alimentares dos platirrinos. Intestinos delgados relativamente mais longos concordam com as maiores taxas de consumo de matéria animal, enquanto o ceco e o cólon mais longos indicam a importância da microbiota intestinal na decomposição de carboidratos estruturais e/ou na desintoxicação de defesas químicas de diferentes itens vegetais consumidos. Em termos de matéria animal, identifiquei 12 táxons de artrópodes ingeridos, incluindo insetos, aranhas e milípedes. Os padrões de consumo relativos à riqueza, diversidade e proporção de artrópodes na dieta não atenderam aos clássicos modelos de Jarman-Bell e Kay. Cerca de 95% das sementes encontradas nos estômagos estavam inteiras, destacando a importância desses platirrinos na dispersão de sementes. O tamanho das sementes ingeridas variou de 0,5 a 52 mm. Sendo que, encontrei sementes inteiras de até 10 mm no conteúdo estomacal de todos os gêneros analisados, incluindo pithecídeos que são habitualmente predadores de sementes. Por outro lado, sementes >34 mm parecem ser dispersadas exclusivamente pelos primatas de maior porte corporal (Atelídeos). A dieta de Alouatta juara não diferiu em relação às proporções de itens consumidos em várzea ou terra firme. No entanto, estimativas de quantidade de sementes e de biomassa dispersas diariamente por km² foram maiores na floresta de várzea, possivelmente devido à maior densidade de guaribas-vermelhos, mas, também, à maior riqueza ingerida, supostamente em decorrência da maior produtividade primária neste ambiente. Ainda, detectei quatro táxons de parasitos intestinais infectando guaribas-vermelhos. Por fim, identifiquei que períodos de águas altas são também os períodos de alto risco de infecção parasitária, uma vez que o número de ovos e de oocistos, assim como a prevalência dos parasitos, aumentam à medida que o nível da água dos rios se eleva. Os resultados obtidos nesta tese contribuem para o avanço do conhecimento sobre aspectos evolutivos das adaptações morfológicas à dieta, ecologia alimentar e parasitológica, e para a compreensão dos papéis ecológicos desempenhados pelos platirrinos. Além disso, podem subsidiar estudos futuros sobre o impacto da caça nos serviços ecossistêmicos prestados pelas espécies de primatas alvo.